domingo, 2 de julho de 2017

Vou partir


Pro Alberto Lins Caldas

Eu vou partir,
a coisa toda esquisita,
eu amarrei um pano de fita,
no dorso do meu cavalo,
vou entristecer os laços,
os modos, os afetos que tive,
eu levo os tabacos, os fumos
do meu cigarro cínico,
estou a léguas do horizonte,
lá vou descansar na fonte,
lá do sol e da ponte,
meu ponteiro treme no avanço,
as ventas do meu cavalo,
na frente da procissão,
os fantasmas me seguem,
miasmas prosseguem,
eu assumo minha maldição,
o apodrecimento das carnes,
vou partir e o martelo
do passo do meu cavalo
vai estourar os ouvidos,
sua paz de marinheiro,
o martelo vai atravessar
o domingo dos crentes,
vai, vai anunciar
o começo da guerra sem fim,
eu, meu cavalo errante,
entraremos nas aldeias,
nossa ira, nossa herança,
o vaso das flores desgraçadas,
os olhos pelas janelas
suspirando gerações passadas,
meu cavalo é quem me manda,
eu estou triste e tenho a lança
que vai ferir de sangramento
as pequenas casas sujeitadas
às monções, à má temperança
dos climas, da natureza,
as tintas vermelhas escorridas
das paredes, o enfraquecimento
das cores, eu vou com meu cavalo,
o terço pendurado no pescoço,
o suor das visitações,
dos entes de outros mundos,
vou reunindo os ódios,
vou melhorando em mim
todos os ódios que tenho,
os remédios de odiar
são as efetivas curas,
as bicheiras supuradas
dos peitorais do gado,
eu tenho fumo e cachaça,
eu tenho óleo queimado,
eu vou pela chaga do mundo,
meu cavalo é fogo nas patas,
onde o mato cresce, morre,
eu tenho cerrado os dentes febris,
eu vou de espingarda,
destruir toda essa lei,
de mercado, de roubo e bancos,
eu vou pôr no chão,
nas ferraduras que acabam,
as paredes, os alicerces,
as estruturas, os arcabouços,
vou pôr no chão os poderes,
os poderes de separação,
eu vou partir muito antes
do despertar das manhãs,
antes dos corpos em amor,
do sobejamento dos desejos,
antes dos beijos e dos gozos,
dos jejuns e das persignações,
antes que me vejam
com a botina e a tralha toda,
as amarrações da aurora,
os lenços das ciganas
na minha roupa de luta,
o anéis no meu cavalo,
ele pronto pra morrer,
ele pronto pra me ter,
as noites das cigarras,
nós nos campos das estrelas,
vou partir pra repartir,
vou pra distribuir,
e se me procurarem,
se perguntarem extremos,
se desvairado gritarem
meu nome e assobiarem
o assobio de chamamento
do quando meu cavalo vinha
dócil e ainda potro,
se andarem pelas ruas,
a anarquia do vento,
o cegamento das chuvas,
das grandes tempestades,
se pronunciarem meu nome
na tristeza, na saudade,
saibam:
meu cavalo furta-mundo
me levou pro infinito.

Fiori Esaú Ferrari

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