quarta-feira, 26 de julho de 2017

O Passeante invisível

Nunca ninguém o viu. Nunca ninguém se deparou com ele ao dobrar uma esquina, fosse noite ou dia. Nunca ninguém duvidou que ele se passeava invisível por toda a cidade. Alguns afirmavam ter entrevisto sombras que eram indubitavelmente do passeante invisível. Alguns afirmavam ter ouvido sons abafados, momentâneos arrastamentos de pés, que comprovavam que ele se passeava por ali.
A cidade é feita de muitas estruturas artificiais. Os homens precisam de um lugar coletivo para viver. Estarem juntos dá conforto e segurança, mas demasiada proximidade torna-se inquietante. Estar a sós com outro homem numa rua deserta, noite alta, é tão ou mais assustador do que enfrentar os silêncios e os ruídos da noite na floresta, na serra, no campo. Os homens precisam de estruturas, muros que os separem dos outros homens. O passeante invisível construira a cidade, mantinha as estruturas fortes, escorraçava os inimigos, assegurava os fornecimentos. Ele é forte e destemido; passeia-se por toda a cidade, sobretudo no ermo da noite. Dizem. Porque veem sombras, ouvem certos sons reveladores, porque só pode andar por lá, invisível.
— Olhem, lá vai a sombra dele, por entre os pilares daquelas arcadas — diz um.
— Olhem, vi agora mesmo um reflexo dele no vidro daquela montra — assevera outro.
Ninguém punha em dúvida estes avistamentos fantasmáticos. Toda a gente sabia que o passeante invisível andava por lá. Nalgum sítio havia de estar: nas arcadas, nos vãos das portas, nas gares rodoviárias ou marítimas. Os seus sinais vislumbravam-se sempre a desaparecer por detrás de alguma estrutura da cidade. Ele andava lá, mas invisível.
Conta-se que, em tempos que ninguém já recorda, um jovem, irreverente como todos os jovens, ao ouvir alguém dizer, pela milésima vez, que acabara de avistar a silhueta do passeante invisível, não se conteve, como seria prudente:
— O passeante invisível não existe!
Um grande burburinho se gerou entre os que ouviram tal dislate. Quiseram bater-lhe, ou então que retirasse o que tinha dito, que pedisse desculpa.
— Quem é que achas que construiu a nossa cidade, mantém as estruturas fortes, afasta os nossos inimigos e assegura os fornecimentos de que a cidade precisa? — confrontaram-no.
O jovem ainda tentou persistir no erro, mas compreendeu que estava isolado e desacreditado. Pediu desculpa.
O alcaide, no entanto, não hesitou em tomar medidas que devolvessem à população toda a confiança eventualmente perdida e até a reforçassem. Emitiu um edital anunciando que, a partir de então, por especial mercê do passeante invisível, ele passaria a usar uma roupa que o tornasse visível e identificável. Além disso, quem quisesse ver a roupa por ele usada, bastaria dirigir-se à alcaidaria onde estaria exposta numa câmara junto à entrada.
Os muitos cidadãos que lá acorreram viram o que parecia andrajos de mendigo, dado o seu aspeto miserável, mas todos compreenderam que eram os mais adequados para alguém tão humilde que evitava mostrar-se. A confiança de todos fortaleceu-se. O passeante invisível continuava a proteger a cidade e agora podia ser visto. E mais frequentemente passaram a avistá-lo nas arcadas, nos vãos das portas, em outros abrigos precários. Se não era ele, parecia, pelos trajes.

Joaquim Bispo



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